A voz da mulher solicita ao filho que atravesse a rua com cuidado. Enquanto fala, ajeita o casaco sobre o corpo miúdo que nasceu de suas entranhas. Muitos amigos o esperam. A mulher se apressa numa íntima recomendação. As poucas palavras resguardam preocupações. Ele não ouve. Já está envolvido pelos outros meninos que com ele comemoram os motivos que lhes são particulares. O beijo na testa o alforria para a travessia. Abraçado a uma mochila de lona azul, o menino corre na direção do ônibus que o levará ao destino que desconheço.
O corpo materno se encosta no carro. Parece rendido, cansado, como se a entrega do filho ao ônibus finalizasse um doloroso ritual de preparo. Com uma das mãos amparando a boca, enquanto a outra abre estradas pelos cabelos, ela acompanha todos os movimentos do menino. Só Deus conhece os sentimentos que lhe ocorrem. As amarras do amor a inflamam. Há elos humanos que só um coração materno pode experimentar. É incomensurável o vínculo que os congrega. O corpo filial é um desdobramento físico do seu. Ossos nascidos de seus ossos, carnes extraídas das suas, sangue retirado de seu sangue. Uma geografia humana desmembrada, como gleba que se desprende do continente assumindo a condição insular.
As liturgias do tempo. O corpo menino a viver o inevitável destino de crescer, assumir autonomia, ser convidado a uma programação que não a inclua, entrando em veículos que o levam para longe do ventre que o trouxe ao mundo. O broto crescido, o organismo que assume aos poucos a condição de totalmente outro, uma idiossincrasia sendo desvelada, atravessando a rua, buscando caminhos que não a comportam. As vozes do mundo clamando pelo seu filho, levando-o para longe dos olhos que velaram incansavelmente para que sobrevivesse ao mínimo dos perigos que poderiam ceifá-lo antes do tempo.
O ônibus se afasta. A mulher arrisca um último aceno. A mão desenha no ar um movimento que só a alma compreende. A simbiose segue o curso de outros recursos. Depois de expulso do ventre, o filho carrega consigo as amarras delicadas da pertença. É a ciranda do amor, o movimento que se opõe ao desdobramento físico. Enquanto as carnes se expulsam para que se assumam autônomas, uma sutura espiritual os coloca em definitiva comunhão. A mão materna, ainda que não achada pela mirada do filho, continua o aceno que só ela vê. É certo que o gesto está preso ao sentimento que a encorajou a expor a cria ao temporário do afastamento. O menino voltará. É certo que voltará. Terminado o dia, ela o recolherá cansado das alegrias que só alegram porque passam. Voltará necessitado de banho quente, toalhas limpas, desejoso de colo, abraços que o devolvam à segurança da cumplicidade que só o lar bem edificado pode lhe dar. A mulher o receberá. Retomará a tutela que lhe atribui sentido. Amará o amor que tem o dom de carbonizar na alma a semelhança que o tempo não apaga. Investigará cada centímetro de seu desdobramento à caça de arranhões que careçam de cuidado.
A cena se desfaz. Ônibus e mulher se distanciam de meus olhos. Não posso reter o instante. O acaso me permitiu contemplar a agenda daquele amor. Retomo meu destino. As ruas repletas não me permitem demora na despedida presenciada. O cotidiano me absorve. Um engasgo de emoção me recorda a condição de vivente. A vida me afeta. Sorrio sozinho ao reconhecer que os detalhes do mundo ainda me assombram. Não sou indiferente às transcendências da cidade, ao milagre que estraçalha o espelho dos dias e vem lavar meus olhos com sua luz delicada.
É diante do natural que minha alma se ajoelha. Rende-se ao simbólico das vias térreas, à trama de ouro que sustenta o ordinário da vida, à luz batismal que banha o paganismo dos séculos, o detalhe divino que minha alma reconhece e absorve.
Sigo meu caminho. A luz da manhã reveste a cidade com cores recém-nascidas. O alaranjado das horas me inspira renascimento, Ardem diante de mim as epifanias do mundo. Meus olhos ultrapassam a matéria finita dos corpos, o concreto dos muros. Prescruto e ultrapasso a côdea da concretude de todos os seres criados. Toda a realidade espiritual das coisas, a alma que sustenta as cenas humanas, o centro onde pulsa o significado de tudo. Eu ando pelas ruas. Todas as vozes salmodiam comigo. É sagrado viver!
Padre Fábio de Melo, do livro "É Sagrado Viver"
Fonte: INFINITO PARTICULAR
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