sábado, 17 de março de 2012

SER PESSOA: PROCESSO DE DEVOLUÇÃO

'O desafio de ser pessoa'. O termo 'pessoa' sempre foi muito usado, principalmente pelos gregos. 'Pessoa', no contexto grego, significa a máscara que o ator usava para interpretar no teatro. Eu tenho que ser eu. Uma pessoa só pode ser pessoa, se ela é dona de si. Nós temos que tomar posse do que somos. Quantas coisas você possui e ainda não tomou posse? O amor é a capacidade de descobrir no outro o que ele ainda não viu que tem. É como se você tivesse uma grande propriedade e não tivesse a capacidade de andar por ela para demarcá-la, e não a conhece na totalidade. Mas aos poucos vai sendo dono daquilo que já é seu. Ser pessoa é ser dono de você mesmo, e saber lidar com seu jeito de ser, de amar, de sentir, de pensar, de ter suas limitações e saber o que você pode. Quantas vezes você se dispôs a ser o que não era, dizendo 'sim' onde era para dizer 'não'? Você não teve consciência do que não podia. É o que Jesus sempre fez com as pessoas. Fazendo-as tomarem posse do próprio território, de si mesmas. 'Eu sou dono de mim, e não abro mão'. Quem é o 'prefeito' de sua 'cidade'? Tenha coragem de dizer aos inimigos: 'Aqui nesta cidade tem prefeito (eu), e aqui não tem lugar para os bandidos. Eu não abro mão do meu território'. E é aqui que Deus trabalha em nós para celebrar a Eucaristia, é para Deus que nos entregamos de novo. Eu sou pessoa, e me recebo de Deus o tempo todo. E Ele diz: "Cuide do que você é. Você não tem o direito de deixar as pessoas lhe roubar". E tem pessoas que te 'devolvem'. A experiência com Deus sempre diz: "Eu lhe devolvo". Não tenha preguiça de conhecer seu 'território' e saber quem você é realmente. O total desconhecimento de si, não pode acontecer. A pessoa que não é 'pessoa', não tem assunto e sabe tudo o que acontece na vida do outro, mas não sabe de si mesma. As pessoas que vivem preocupadas com as novelas da vida, se desgastam com pessoas que nem conhecem. Não é fácil compreender o território humano. Se investigar e conhecer o 'porquê' de algumas reações, o 'porquê' aquela raiva foi tão grande naquela hora, o 'porquê' eu explodi com aquela pessoa... É descobrir o 'porque' do afeto que tenho dentro de mim. Você deixa de ser explosiva demais quando toma posse do que é. Tudo isso porque você está em processo de construção. Deveríamos estar com placas dizendo: 'Estamos em obra, cuidado!' É o seu processo de 'feitura' de ser pessoa. 'Não tenha preguiça de conhecer seu ‘território’ e saber quem você é realmente' Enquanto você viver haverá partes deste 'território' para conhecer. Tantas coisas nos foram entregues, mas se elas não vêm à tona, e nem as investigarmos, tudo o que temos dentro de nós fica sem uso. Quanta coisa preciosa você tem dentro de você e não sabe por quê fica só na superficialidade do conhecimento de si? Quando é que você sabe que uma pessoa se ama? Você só sabe que ela se ama quando ela se cuida, quando tem disciplina. Que você não morra com seus valores ‘engavetados’, pois Deus lhe dá talentos para que você os use, e não para deixar guardado. 'Eu sou um dom de Deus'. Todos os dias há alguma coisa para você ir atrás e descobrir. Você se recebe de Deus, Ele que me deu esta obra todos os dias. Temos que ser bom naquilo que a gente faz para nos colocarmos à serviço dos que necessitam. Uma pessoa só é pessoa quando se disponibiliza aos outros. Aquilo que recebo de Deus coloco à disposição dos outros. E nisso temos a integração de uma personalidade saudável. Ser pessoa não é só contemplar o que sou e tenho de melhor, mas ser pessoa é descobrir e cultivar o que tenho de melhor para que outros sejam beneficiados. Como Jesus fazia o tempo todo em sua capacidade de se doar e ensinar, é preciso se doar também. É necessário tomar cuidado para outra pessoa não tomar posse do que você é, pois a partir daí você não terá mais domínio sobre o que é seu. Se não sou capaz de tomar conta de mim, perco meus talentos e não me possuo mais. Quantas vezes você foi machucado nesta vida e pessoas lhe roubaram? Quando não me possuo, tenho dificuldade de ser para o outro, e corro o risco de não ser o que devo ser. Estabeleça o seu limite. Seja firme!

 Padre Fábio de Melo

quarta-feira, 7 de março de 2012

O direito de ser frágil

É uma riqueza insondável este texto de São Paulo (2Cor 12,1-10). São Paulo nos fala que para que o seu espírito não se enchesse de orgulho e vaidade, foi lhe colocado um "espinho na carne". Não é possível falar de crescimento humano se antes não falarmos de reconhecimento dos nossos limites. O bom treinador é aquele que vai saber salientar a qualidade do atleta, mas, sobretudo, vai saber encaminhá-lo para a superação dos limites. O primeiro passo é reconhecer onde a gente precisa melhorar. É um grande desafio para todos nós porque, lamentavelmente, as pessoas não estão preparadas para nos educar para a coragem. Sabe por quê? Porque muitas vezes os incentivos que nos são dados estão mais voltados para esquecermos as nossas fragilidades. Quando mostramos as nossas fragilidades, há uma série de repreensões diante de nós. Você já reparou que a gente não deixa a criança chorar? Já reparou que quando o recém-nascido chora, nós fazemos de tudo para calar a boca dele. Fazemos uma série de "cara feia" para ver se a gente cala a criança, para tentar espantar a fragilidade. Nós, humanos, temos uma dificuldade imensa de lidar com a fragilidade do outro – ainda que seja filho da gente. Nós gostamos é de todo mundo feliz. Não estamos preparados para encarar a fragilidade. Parece que a nossa educação está sempre voltada para nos revestir de uma coragem que nos faz esquecer o limite. Ter coragem é descobrir onde está a nossa fragilidade e ali trabalhar com um empenho um pouquinho maior. É não desconsiderar o que temos de bom, mas é também colocar atenção naquilo que ainda temos que melhorar. Estamos em processo de feitura. Não estou pronto, eu não sou perfeito, estou por ser feito, estou sendo feito aos poucos. E no processo de ser feito aos poucos eu vou descobrindo onde é que dói este espinho. Este espinho muda de lugar. Quanto mais uma pessoa está aperfeiçoada no processo de ser gente, maior é a facilidade de conhecer limites. Para você retirar um espinho, às vezes, é preciso deixar inflamar. É como se o seu corpo dissesse: “Isso não me pertence”. De qualquer jeito, nós temos que tirar aquilo que não nos pertence. Tem algumas inflamações do espírito, da personalidade que tem gente que é tão aborrecida que a gente não pode nem encostar. São aquelas inflamações que se alastram. E aí é que entra a grande contribuição do Cristianismo, numa proposta antropológica. Porque Deus não quer que você seja um anjinho na terra, mas que você deixe de ser inflamado. Ele quer te mostrar as inflamações para que você lute. Cara feia, arrogâncias, isso é complexo de inferioridade. Sabe qual é o espinho? O medo, a insegurança. Você já fez a experiência de viver uma palavra que te fez vazar em tudo o que estava estragado? Língua afiada quer dizer: deixar toda a inflamação que está dentro de nós vir para fora. Ter condições de vazar aquilo que antes a gente desconhecia é admitir e reconhecer que somos frágeis. A pior ignorância é aquela que finge que sabe! Temos medo de mostrar que não aprendemos que somos frágeis. Quantas vezes na nossa vida, por medo, perdemos a oportunidade de aprender. Às vezes, por medo de expor a nossa fragilidade, porque parece que o mundo de hoje se esqueceu de mostrar a cultura do esforço que se fez para chegar aonde chegamos, perdemos o direito de chorar. E muitas vezes choramos e não sabemos o porquê estamos chorando. O ensinamento de Jesus é sempre o avesso do avesso. Quer ser santo? Assuma que você é fraco. Muitas vezes, neste processo de se conhecer, a gente sangra. E nós precisamos sangrar. Um dos maiores poetas da música diz isso. Quantas vezes você não se viu traduzido em uma canção de alguém que teve a coragem de sangrar, não teve medo de mostrar as próprias fragilidades. Nós somos todos iguais. Nós, padres, somos todos iguais. Não adianta a gente fingir que é forte, ou ficar fingindo que não sente e que não tem medo. Eu não sei se você tem mais de cinco pessoas que conhecem os seus segredos. Para quantas pessoas você teve coragem de sangrar? Pessoas que te enxergam por dentro são raras. Conversão é isso. É você educar o seu filho para ele poder te contar onde estão os espinhos. O espinho não é o defeito, mas é a seta que nos mostra onde temos que trabalhar para ser melhor. A vida vai perdendo a graça porque não nos deixamos sangrar. A gente sangra melhor nos momentos de intimidade, onde a gente tem coragem de tirar a couraça. É muito melhor a gente admitir que tem medo. Para as pessoas, é sempre doloroso ter que tirar os espinhos, de ver vazar as inflamações. Há tantas situações que nos deixam com o “coração na boca”. Às vezes, nós colocamos muito mais atenção naquilo que as pessoas estão achando de nós, do que no que nós pensamos de nós mesmos. Examine-se, você é uma pessoa que consegue levar o outro à cura. Em última instância, o que vai sobrar de nós é a nossa vontade de amar. Vamos descobrir o que hoje em nós está "infeccionado", porque é preciso sangrar, é preciso reconhecer-se frágil.

 Padre Fábio de Melo 

quinta-feira, 1 de março de 2012

Uma história sugestiva

Tive a oportunidade de conhecer a África do Sul. Uma viagem fascinante. A grandeza do país está exposta nos pequenos detalhes. Um lugar onde as cores prevalecem. Nas paredes, na paisagem, nos tecidos e nas almas. A África é um país musical. Em tudo há a prevalência de um som orgânico, nascido dos lugares, emitido sem reservas, sem descanso. Brota da natureza e das bocas. Nasce ao som de tambores e instrumentos rudimentares retirados do contexto da utilidade doméstica. Vida pragmática sendo transformada em vida simbólica. Criatividade de um povo que reconhece a vida como território da revelação divina. Aliás, admiro muito as comunidades humanas que não caíram na resolução fácil que divide o mundo em duas partes: sagrado e profano. Sempre tive predileção pela musicalidade negra. Acho instigante a construção melódica que costura numa mesma pauta acordes felizes e acordes tristes. Mixórdia que revela a luta de antepassados; homens e mulheres que construíram a história que hoje perpassa o canto que meus ouvidos escutam. De um lado, os colonizadores, invasores que resolveram estender os poderes de suas pátrias, obedecendo ao instinto rudimentar do poder. Força que legitima os absurdos das guerras, invasões e outras irracionalidades humanas. De outro, os colonizados, os legítimos donos da terra, os curadores do espaço. Música que conta os sofrimentos do degredo, mas que também revela as esperanças que a escravidão não conseguiu sufocar. Durante a viagem pude ouvir muitas histórias sobre diferentes tribos africanas. Uma delas me comoveu. Uma história musical. É o relato de um costume preservado por uma tribo. Para cada criança que nasce uma música é composta. Uma oferenda que marca a entrada da criança no mundo. Música que estará diretamente ligada à identidade pessoal. Ela cumpre papel de ser a trilha que sonoriza os momentos importantes da vida daquele que a recebeu. Há um fato interessante. Segundo a história que ouvi, além de ser cantada nas celebrações felizes, a música é utilizada por ocasião de grandes deslizes cometidos pela proprietária da música. Funciona como uma espécie de purificação. Ao perceber o desvio de caminho, a comunidade se reúne e canta, para que a pessoa, ao ouvir a sua música, possa ter a possibilidade de voltar ao formato original, ao início de tudo, momento em que a música lhe foi ofertada. Esse costume me fez pensar no quanto é necessário ter um referencial que nos faça voltar ao estado primeiro das coisas. Uma voz, uma palavra, um lugar, uma música, enfim, qualquer coisa que pertencesse à nossa memória afetiva, e que tivesse o poder de nos fazer voltar a nós mesmos. Algo que pudesse nos fazer enxergar melhor o contexto de nossas escolhas. Algo que nos ajudasse na reconciliação com nossos limites, sobretudo no momento em que os erros prevalecem sobre os acertos, e a vida se apresenta difícil demais diante de nossos olhos. A história me fez refletir sobre a arte de recomeçar. Verdade ou lenda? Não importa. A história já virou verdade em mim. A partir de hoje quero estar atento a tudo o que me recorda quem sou. Esteja também. Mais cedo ou mais tarde precisaremos deste instrumental.
Padre Fábio de Melo
Site oficial  www.fabiodemelo.com.br

MÊS DE MARÇO...

Que as águas de março lavem as dores de sua alma. Hoje é dia de recomeço, no
 calendário e na alma".
 (Padre Fábio de Melo, Diário Espiritual)