segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

'Pe. Fábio de Melo: Saber finalizar...

"Saber finalizar uma fase da vida requer tanta sabedoria quanto para iniciar."
(Padre Fábio de Melo) 

Pe. Fábio de Melo: Onde houver um ser humano...

Onde houver um ser humano realizado, nele Deus estará revelado. 
Queiramos isso. Sempre. Até o fim. O fim que nunca tem fim. 
Padre Fábio de Melo. 

Epifania – Pe. Fábio de Melo

Eu desfruto o sagrado dos dias. Sorvo a transcendência com a mesma naturalidade que respiro. Não me esforço para isto. Apenas obedeço aos comandos da alma, à voz calma que em mim clama por ritos santos.
Não me privo de esbarrar em Deus. Eu o experimento quando dobro os joelhos num ritual de prece, mas também quando derramo no prato claro uma concha de feijão escuro. Emociona-me a beleza das coisas. Comove-me a delicadeza divina, gesto generoso de deitar sobre o ordinário de minhas demandas o seu manto sagrado. 
É litúrgico viver. É o corpo que declara. Conhece o segredo dos místicos. Rezar o significado das horas, dividir o tempo, estender a renda sobre o altar, cobrir o corpo de paramentos, inspecionar urgências, solicitar a Deus o que desejamos de futuro e adorná-lo com os delicados laços da beleza. A amarra é redentora. É por meio dela que nos explicamos o passado. É miraculoso retornar. O já vivido recebe as abluções que perdoam. Nas águas do rio santo que corre em mim, mergulho minha humanidade. Quaro diariamente o encardido da alma. Exponho ao sol as nódoas que perturbam meu amor-próprio. Exorcizo a tentação de nivelar-me ao imundo do mundo. É necessário viver. Andar na direção de tudo o que me desperta os sentidos. Fomentar o sorriso dos que passam por mim. O esquartejamento das alegrias potencializa sua permanência. Dou-me aos outros sem prejuízo. É eucarístico amar. Tornar-me pão solidário que o outro mastiga para suportar viver. É confortante servir. É léxico divino se encarnando em parcelas humanas, propondo palavras, gritando verbos, inventando adjetivos que restauram a beleza dos que estão negados. É admirável observar. Sobre os altares profanados rostos desfigurados sugerem profecias. São verdades revolucionárias desconcertantes. 
Miseráveis imersos em misteriosas alegrias nos desinstalam. Carecem de tão pouco para sorrir. Um caixote à beira da estrada e uma lua no céu. Só isto. Tudo mais é invenção. O espírito livre enlaça os sonhos que o mundo desprezou. O ausente é inventado. O corpo que sonha recebe as recompensas do objeto sonhado. É necessário sonhar. Eleger no coração a fração da existência que ainda não sorveu o ar. 
Eu não desisto. O suave respiro do mundo sincroniza meus passos. Dou-me em segredo as anseios do coração indômito. Ele me consome. Sente dobrado tudo que o visita. Foi inoculado com o vírus da melancolia. Não me importo. Sofro de poesia. Sou arauto do Verbo que recebeu na carne o dolorimento da existência. É impossível não crer. As cenas da vida me pulverizam de fé. 
A mesa posta não comporta nobreza. A vitualha que está servida em nada me recorda os banquetes que já vi pelo mundo. Mas é minha. É o que tenho. Mais vale a simplicidade que apascenta do que o luxo que desgoverna. Eu aprendi com o tempo. Perder foi essencial. Ganhar também. Depois de tudo ter, saber relativizar o alcançado. Quanta liberdade careço ter para olhar com indiferença minha vitórias. Para os fracassos, também. 
A fachada de vidro conduz pela mão a paisagem para dentro da casa. Já não estou só. O gado que rumina ao longe me acompanha. A contemplação gera partilha. As distintas condições se complementam, como se proprusessem soluções aos conflitos do mundo. O gosto do pão com manteiga é acrescido pela cena rural desse lugar a que chamam de Sete Voltas. São bem mais que sete. Eu sei que são. As voltas bem mais que sete me envolvem e me cercam. Estou na casa que moro. Mais que isto. Estou na casa que mora em mim.
O verde ao longe é mastigado pelos animais num movimento que parece nunca terminar. O que aos meus olhos é beleza, para eles é sobrevivência. Sirvo-me de café recém-coado. O negro do líquido preenche o branco da louça. Contemplo o acontecimento. A beleza antecede a saciedade. Os olhos comem antes que a boca. É luminosa a fome. É epifânica, grandiosa, bíblica. 
O gado me recorda. Também eu careço ruminar nutrientes. O corpo vazio solicita repasto. Dou-lhe o que pede. É questão de sabedoria. A ancestralidade de minha condição me faz caçador. Para que a alma não se indisponha à beleza, o corpo carece ser alimentado. O sabor se mistura ao que sei sobre mim. A matéria nos encaminha aos labirintos do espírito. Juntamente com o pão trituro o sonho do dia. Almejo me possuir para depois me oferecer. Ser pão no banquete da amizade. É só o que quero. Descobri. 
Pe. Fábio de Melo. In: É Sagrado Viver. São Paulo: Planeta, 2012 
Fonte: https://perhappinessme.wordpress.com/2014/07/27/epifania-pe-fabio-de-melo/

Padre Fábio de Melo: Eu na trilha incerta dos meus passos...

Eu na trilha incerta dos meus passos,
mergulhado no destino imenso dos meus sonhos,
vou percorrendo as estradas do mundo
deitando a toalha branca sobre os altares da humanidade,
e retirando do horizonte profano da vida
a matéria-prima que será sacralizada.
Ele , o tempo e seus movimentos de suas cirandas,
vida que se reveste de cores e estações litúrgicas
que nos convida a celebrar o específico de cada motivo.
Tempo de preparo, de colheita, vida comum, sopro do espírito, tempo de ressuscitar.
Eu, sacerdote das divinas causas;
Ele, sacerdote das humanas razões.
Quando com ele não posso, faço acordo, sorrio com os motivos de suas alegrias e poetizo as tristezas, que de suas mãos se desprendem!
Mas quando com ele posso, ah! Quando com ele posso, eu dele me esqueço e vivo!
Padre Fábio de Melo